
Vou destrinchar o parágrafo acima:
“Estamos aprendendo a lidar com o viver nas incertezas…”
Estamos definitivamente na era das incertezas. Estamos acostumados a acreditar que as coisas estão sob controle, seja individualmente ou coletivamente. A cada dia que passa, percebemos que tudo aquilo que acreditávamos está sendo questionado, está sendo chamado a ser repensado. Ao mesmo tempo, temos a tendência de ficarmos presos às nossas crenças e valores, mesmo que as evidências apontem em outra direção. Com as constantes mudanças que temos vivido nos últimos anos (para cada um, o número é diferente), a reação de cada pessoa às informações, desinformações e múltiplas explicações são geradoras de incertezas. Alguns preferem escolher uma explicação e ficar radicalmente a defendendo, outros buscam se informar melhor e aceitar melhor as incertezas. Diz um provérbio popular: “Quando os ventos da mudança surgem, uns constroem abrigos… outros moinhos.”
“… apesar de ainda fingirmos que sabemos para onde estamos indo.”
Temos muita dificuldade em caminhar pelo desconhecido, por aquilo que não conseguimos dar uma explicação. Por isso existem tantos mitos que rodeiam nossa cultura. Acreditamos que precisamos saber que estamos no controle dos nossos pensamentos e ações, acreditamos que a nossa realidade é a realidade. Como isso nos sentimos seguros, mesmo que para isso precisemos acreditar numa narrativa bem fantasiosa. Temos a necessidade de nos sentirmos pertencendo, aceitos. Fazer parte de um grupo (tribo) que nos acolhe, desde que sigamos suas regras de crenças e condutas. Isso nos leva a fazer escolhas do coletivo ao invés de escolhas coletivas.
“Acreditamos que somos separados de tudo e de todos…”
Somos interdependentes, somos interligados a tudo e a todos, somos um por assim dizer. No entanto insistimos em separar, separar e separar. Em algum momento histórico acreditamos que seria mais fácil ver tudo separado para não ter que lidar com o caórdico, com o caótico. Estamos gastando muito tempo e energia para voltar a noção da complexidade em que vivemos. Essa visão sistêmica incorpora a incerteza e todas as variáveis que compõem a vida como ela é. Ao separarmos teremos sempre o nós e o eles, o certo e o errado, o bom e o mal e perdemos de vista que essas polaridades são parte do todo. São lados (dualidades) do mesmo bastão. A computação funciona com esse princípio da dualidade. Para tudo que fazemos num computador existe apenas o ligado e desligado (0 e 1). Literalmente é isso, as combinações entre essas duas partes formam o todo. Parece metafisico, mas é muito simples e ilustra bem nossa tentativa desastrosa de separar o que funciona bem junto. A medicina é um outro bom exemplo. Se você separar algum órgão do corpo, ele deixará de funcionar como deveria. Apesar disso ainda se insiste em ter especialistas que procuram resolver uma parte sem olhar para o todo integral, funcional.
“… por isso vivemos em permanente negação.”
Negamos o outro, sua cultura, suas crenças, seus valores, sua origem, sua verdade, sua cor, suas escolhas. Negamos a natureza como se não fossemos natureza. Negamos porque aprendemos a negar o que não somos, o que não temos, o que nos amedronta.
Podemos reaprender que podemos viver com o que a vida nos oferece. Que tudo bem não saber. Que podemos viver em colaboração. Que podemos aprender e amar com o diferente, com o que temos e com nossos medos.
Vou escrever novamente o primeiro paragrafo e espero que as palavras sejam mais significativas do que na primeira leitura:
Estamos aprendendo a lidar com o viver nas incertezas, apesar de ainda fingirmos que sabemos para onde estamos indo. Acreditamos que somos separados de tudo e de todos, por isso vivemos em permanente negação.
O Homo Sapiens tem a capacidade de acreditar em coisas que não existem. Com isso, segundo Yuval Harari, ele conseguiu criar comunidades cada vez maiores e controladas por essas… fantasias. O que nos faz acreditar no inacreditável? O que nos faz acreditar nas narrativas imaginadas por quem controla os bandos, as empresas, as cidades, os estados e os países separados por linhas imaginárias. Essas ficções são cada vez mais sofisticadas e agora querem nos levar ao Metaverso que o Zuckerberg quer nos fazer acreditar que é dele. No meu tempo chamavam isso de vaporware. Novamente indico a fala do Yuval em Londres no TEDx em junho de 2005.
Todo dia, toda hora alguém cai numa ficção (oficial ou não) que os de fora riem dos trouxas que acreditaram no mito. Como respondia, brilhantemente, o Joseph Campbell quando perguntado o que era Mitologia: “Mitologia é a religião dos outros.” Há centenas de exemplos uns mais engraçados que os outros, claro que quando não somos nós que acreditamos neles. Pensei em colocar um exemplo icônico nesse texto. Nada de grupos como os qu e acreditam que a Terra é plana ou os QAnon. Pensei em exemplos como o da Theranos da Elisabeth Holmes, Realfooding do Carlos Ríos, Knoedler Gallery com a Ann Freedman, Quadriga do Gerald Cotten e tantos outros. Escolhi a Juicy Fields, uma empresa que prometia fazer o seu dinheiro render através de plantações de maconha. O negócio parecia tão rentável que uma grande quantidade de investidores caiu nessa ficção. Mesmo tendo muitos textos e vídeos denunciando que era uma fraude, teve gente que acreditou. Vale a pena ler a história publicada no El País em espanhol ou inglês.
Bruno Pereira e Dom Phillips continuam a gerar consciência mundial sobre as atrocidades cometidas pelo atual governo na destruição da Amazonia e dos povos que a protegem. O pedido de demissão de mais um interino a frente da Funai na Terra Indígena do Vale do Javari revela a precariedade de condições de segurança da região. O presidente da Funai, o delegado da Polícia Federal Marcelo Xavier, inacreditavelmente, nunca foi a região. O governo (ou desgoverno) respondeu a CIDH (Comissão Interamericana de Direitos Humanos) sobre as medidas cautelares das mortes de Bruno e Dom, omitindo o trabalho dos indígenas locais nas buscas (mencionados em meu texto anterior) e deixando de fora o fato de que o Bruno vinha sendo ameaçado.
Estamos há 159 dias da invasão Russa na Ucrânia e o mundo continua passivo.
Estamos entrando no 32º mês da presença do COVID-19 e ainda não temos respostas para as perguntas básicas. Alguém sabe dizer de onde o vírus se originou, quais cientistas estavam certos, resultados de cada vacina, quem agiu criminosamente ou qualquer outra pergunta? Cada um de nós acredita que estamos certos e os outros estão errados. Voltamos a Mitologia do Campbell. Hoje a França liberou completamente as medidas de restrições ao COVID-19. Estamos confirmando a endemia no lugar da pandemia?
Sobre tudo isso que escrevi acima, recomendo fortemente a leitura do livro “The Coronation” de Charles Eisenstein que saiu há quatro dias (28/07). Trata-se de uma compilação de artigos que escreveu sobre a pandemia e, o mais impressionante, é a atualidade desses textos. Ouvi o livro narrado pelo próprio Charles, são quase 5h53 minutos que passam bem rápido nas caminhadas e momentos de “leitura”. Em julho Charles escreveu 4 textos que merecem ser delicadamente saboreados. A leitura de cada um deles varia de 10 a 15 minutos, e também podem ouvir a versão em áudio lida pelo Charles:
Pandemia 1 – https://charleseisenstein.substack.com/p/pandemania-part-1
Pandemia 2 – https://charleseisenstein.substack.com/p/pandemania-part-2
Pandemia 3 – https://charleseisenstein.substack.com/p/pandemania-part-3
Pandemia 4 – https://charleseisenstein.substack.com/p/pandemania-part-4
Texto no site de Charles Eisenstein sobre seu novo livro “The Coronation”:
“Meu livro mais recente compila minha melhor escrita da era Covid, com um prólogo, epílogo e mini introduções adicionados a cada ensaio. Inclui e tem o nome do meu ensaio de abril de 2020, “The Coronation”.
Desde o fim amorfo da pandemia, o Covid afundou parcialmente no inconsciente político. Questões anteriormente polêmicas não são mais tão politicamente carregadas, não são mais tão carregadas de dinâmicas sociais de identidade e pertencimento. Isso significa que as pessoas estão prontas, talvez, para expandir sua criação de sentido e significado em torno do Covid.
Meus ensaios em 2020 e 2021 foram além de articular uma posição contrária sobre as questões do dia. Sim, engajei criticamente as questões atuais, mas sempre com o objetivo de incorporá-las em um quadro maior. Portanto, nenhum dos ensaios é datado; se alguma coisa, eles são mais relevantes hoje do que nunca, à medida que as paixões e lealdades da era Covid diminuem. Infelizmente, grande parte da nuance e complexidade do que eu estava dizendo foi abafada na época por uma tempestade de forças sociais e psicológicas primordiais: histeria e contra-histeria, conformidade irracional e desafio reflexivo, moralidade da multidão e psicose em massa, medos de morte não processados e ressentimentos sociais latentes.
Agora, à medida que a tempestade passa, estou sentindo uma nova abertura para o que ofereci. Portanto, juntei meus ensaios relacionados ao Covid de 2020 e 2021 neste livro, mapeando um arco social externo e psicológico interno da pandemia. Acredito que, com um pouco de distância, The Coronation ajudará um projeto vital de construção de sentido nos próximos anos. Sim, vital. Eu sinto uma sensação de urgência em torno deste livro. As forças sociais que surgiram durante a pandemia ainda fervilham sob a superfície. A maquinaria ideológica que os explorou ainda está intacta, e suas tecnologias de controle associadas estão mais desenvolvidas do que nunca. A história pode facilmente se repetir de maneira ainda mais extrema, se permitirmos.
No meu ensaio inicial sobre Covid, “A Coroação”, descrevi a pandemia como uma iniciação: uma interrupção na normalidade que revelaria o que se escondia dentro e entre nós, que nos enfrentaria com novas escolhas e exigiria de nós novas capacidades. Uma coroação, eu disse, é uma iniciação à soberania, onde escolhas até então inconscientes se tornam conscientes. O Covid iluminou para onde estamos indo: um mundo alienado, trancado, tecnologicamente mediado, ideologicamente polarizado, autoritário e medicalizado sob controle cada vez mais intenso. Essas tendências não começaram de repente em 2020. Agora que vimos claramente nosso destino, não é mais inevitável. Podemos escolher outro com base no que consideramos sagrado.
The Coronation baseia-se em várias narrativas de Covid concorrentes sem ser escrava de nenhuma delas. Em um ponto de 2020, eu disse em um podcast em algum lugar que só seríamos capazes de entender o Covid quando cada um de nós deixar de lado pelo menos uma crença muito arraigada sobre isso – uma crença, talvez, que uniu a realidade. Porque, seja a realidade ortodoxa total delimitada pelas autoridades de saúde pública, Facebook, Twitter, os verificadores de fatos e a grande mídia, ou o universo alternativo conspiratório mais rebuscado, ou algo entre esses extremos, a realidade do Covid que habitamos foi forjado não apenas a partir de evidências e razões. Agora que algumas das paixões diminuíram, podemos começar a remontar os fragmentos do velho normal despedaçado em uma nova compreensão sã e coerente. A Coroação visa servir a esse processo. Certamente não responde a todas as perguntas sobre a pandemia – como poderia, quando novas revelações aparecem praticamente a cada dia? Mas posso prometer a você que trará nova clareza e ação a pelo menos uma pergunta: que mundo devemos escolher agora?”
Encerro o texto de hoje com a terceira leitura do primeiro parágrafo:
Estamos aprendendo a lidar com o viver nas incertezas, apesar de ainda fingirmos que sabemos para onde estamos indo. Acreditamos que somos separados de tudo e de todos, por isso vivemos em permanente negação.
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